LINHA DO TEMPO

  • Como meu pai era funcionário da Sorocabana, conheço tudo sobre trens. Nasci em Tietê, mas logo já caí no mundo.
  • Desde sempre eu não tinha parada. Morei em Maristela, Laranjal Paulista, Jumirim, Pereiras, Conchas, Santa Adelaide, Chave Magueta, Itapetininga, Tatuí.
  • Assim que foi promovido, transferiram meu pai pra um lugar conhecido como Pátio Quatro. E a família toda, como sempre, teve que ir junto. Um lugarzinho feio, ótimo pra fazer um filme de bangue-bangue. Mas tenho saudade, porque foi ali que aprendi a nadar no ribeirão. E, modéstia à parte, sou bom de água!
  • “Ó a laranja baiana! Ó a laranja baiana!”. Eu, criança ainda, vendia quando o trem parava na estação. Às vezes, dependendo da parte da plataforma, a janela ficava bem alta, a gente atirava a penca e o cara jogava a moeda. “Tá certo pode ficar com o troco, garoto”.
  • O primeiro ano do primário fiz em Maristela, o segundo e terceiro em Laranjal Paulista e o quarto em Tatuí, no Grupo Escolar João Florêncio, enquanto morava em Chave Magueta. Pedia todo dia pra sair mais cedo para dar tempo de pegar o trem.
  • Mas sempre dava um jeito de ir no cinema. No começo, as matinês: todo sábado via um filme e mais dois capítulos do seriado. E, aos poucos, não saia mais dos três cinemas de Tatuí, São José, São Martinho e Santa Helena, todos do mesmo dono.
  • Fiz parte da turma dos varadores de cinema: a gente pulava por um casarão vizinho, passava por cima do muro do cinema e saía dentro do banheiro. Aí passava batido pelo fiscal, que não sabia se a gente tinha pago ou não.
  • Uma das cidades que tenho as melhores lembranças é Laranjal Paulista. Lá tinha uma festa de São João daquelas! Tinha de tudo, comes e bebes da melhor qualidade e uma fogueira gigante. E sempre ia um circo acompanhar.

ALEMÃO DO CIRCO

  • No Circo Irmãs Baciocchi grandes holofotes cruzavam o picadeiro de ponta a ponta. Todos ficavam na maior expectativa para ver o leão Sarazani. Eu não, tava mais interessado no palhaço. “Vamos trazer para vocês agora a dupla do riso: Batista e Finca-Finca”. E o povo aplaudia. Era bonito! Choravam de dar risada, adultos, velhos, garotos.
  • Eu saia do espetáculo e já ia com meus amigos brincar de circo. Você já reparou que em brincadeira de criança sempre tem um líder? Comigo era assim. Eu cobrava até ingresso: um palito de fósforo para cada.
  • Vivia varando circo pra conseguir entrar de graça. Na minha aventura, sempre lembro que comecei varando circo. Mas, de todos os varadores, fui o único que se interessou de ser artista. Logo eu já estava com o Tareco no Circo-Theatro Nh’ana, aprendendo tudo com eles.
  • Acho que foi em 1969 que eu montei o meu próprio circo. Primeiro na pracinha da Vila Menezes. Circo-Theatro do Alemão. Nascia o Alemão do Circo!
  • Minha paixão mesmo era o drama, nunca tive essa vontade de ser palhaço, daqueles que pintam a cara. Eu fui por precisão, porque o circo era meu. Eu vivia o papel. Se fosse pra chorar, eu chorava mesmo!
  • Na época eu ia muito no Largo do Paissandu pra resolver assuntos do meu circo. Ali ficava o Café dos Artistas. Contratei muita gente boa lá pra tocar. Eles vinham de São Paulo e enfrentavam cada estrada pra fazer show no circo!
  • No circo, eu gostava de fazer tudo ao meu modo, coisas nossas. Muitas vezes mal acabava de escrever a peça, já punha em prática. Escrevi as primeiras antes mesmo de ter circo, porque gostava.
  • A Marisa do Circo, minha esposa, me ajudava a ter mais controle da renda e minhas filhas ficavam quietinhas assistindo aos ensaios. A família virou circense: até meu pai gostava de acompanhar a gente, fez bilheteria e sempre ajudava a levar os materiais.
  • O Nenê era meu cromo de palhaço nas comédias, fazia números como ventríloquo e foi o melhor ponto que eu tive nos dramas. Nós fizemos muita gente dar risada por aí. “Com vocês, Alemão e Bizuca!”. E a turma aplaudia!
  • O que mais fiz com meu circo foi bairro, zona rural. Não fui muito longe, nem em tantas cidades, mas em cada rebimboca da cidade, eu tive lá! Fazenda Velha, Campininha, Turninos, Campo de Experiência…
  • Nós malhávamos o Judas em qualquer lugar. Me diziam “olha, lá não vai dar público”. A gente ia e dava. Uma época em que em qualquer porta de venda se tirava um dinheirinho. A gente dava espetáculo no chão de terra.
  • Era cada vez mais dificultoso com as nossas três crianças ainda pequenas. Teve um dia que estávamos quase subindo no palco e a minha mulher teve que dar banho. Sempre enguiçava, começamos a atrasar o horário do espetáculo. Tava difícil pra todo mundo e começou uma certa má vontade da turma, o que deixava tudo nas minhas costas.
  • Enquanto isso, eu ficava tentando pôr em ordem: não gostava de nada fora do lugar. Aí chegou um dia que subi no palco e anunciei: hoje vai ser a última apresentação do circo.
  • Depois de um tempo, como gostava tanto da coisa, resolvi que ia voltar para a estrada com um circo reduzido: era de pau fincado e depois fiz de pau estaqueado.
  • Na época do circo reduzido só dava pra fazer espetáculos que tivessem um elenco reduzido também. O que acontecia mais com as comédias. A vida era dura e a turma queria mais é dar risada. Era sucesso certo!
  • O tempo passou, começou a ficar ruim de viajar. Resolvi que seria por um tempo o último espetáculo. Dei baixa temporária no circo e voltei pra marcenaria. Era o fim do Circo-Theatro do Alemão.
  • Hoje o Alemão tá de volta: foi homenageado lá no Largo Paissandu, primeira vez que levei os apetrechos pra capital, no Centro de Memória do Circo, com uma exposição e mostra. Viva o Circo-Theatro do Alemão!

MARCENEIRO LIMA

  • A marcenaria eu aprendi na raça. Eu tinha 13 anos. Comecei como aprendiz, demorou para conseguir ter uma oficina própria.
  • Naquele tempo, a gente pererecava pra aprender um ofício. Trabalhávamos em cinco na oficina do Jorge Turco: o Zico, ferreiro, Alcindo, assistente de ferreiro, Alberto carpinteiro, o dono Jorge Turco e eu, que entrei como aprendiz.
  • Com catorze fui trabalhar na fábrica de tecidos Santa Adélia como tecelão. De lá fui para a São Martinho, trabalhava na primeira turma e tava de pé muito antes do sol nascer. Mas nunca fui muito de ter patrão. Pra ser empregado, nunca prestei.
  • Fiz de tudo um pouco. Trabalhei em limpar junta de tanque, quebrei milho, malhei feijão, carpi café, fiz serviço de destocamento, de cortar árvore, de destocar capim seco, e até de roça. De todos, o mais chato que fiz foi dar de comer para uma máquina de debulhar milho.
  • Servi o exército em Itu, no 2º Regimento de Obuses 105. Meu superior era o Sargento Manfredi, que eu fiz virar um personagem do meu filme A Ronda da Morte. Esse era bom de físico! Subia em qualquer corda.
  • Saí na primeira baixa e voltei pra Tatuí me dedicar à marcenaria. Sempre gostei, porque tinha arte. Era assim: eu imaginava, desenhava e punha em prática. Fui do tipo que fazia de tudo e ficava contente.
  • A minha primeira oficina foi no bairro do Boqueirão, do lado da casa que eu morava com meu pai. Bem na frente eu tinha um pôster enorme do Rex Allen, com seu chapéu de cowboy e camisa xadrez.
  • Nos anos 70, a marcenaria estava a todo vapor. Quando dava espetáculo ou exibia filme, guardava a aparelhagem toda, colocava as cadeiras e bancos que tinha e apresentava.
  • Depois, já nos anos 80, me mudei da Vila Doutor Laurindo pra Vila Jurema e a marcenaria foi junto.
  • Não era fácil: trabalhava na marcenaria, saía pra vender na rua, atendia os clientes que alugavam quarto e ainda dava show! Pra complementar a renda, vendi reciclados por muito tempo. Um complemento, porque a marcenaria nunca larguei, até hoje faço uns servicinhos.

PALHAÇO POLACO

  • Quando desmontei o circo, tive uma companhia de teatro. Tivemos uns quatro elencos diferentes. E aí fazíamos apresentações pelas redondezas. Foi aí que resolvi adotar o nome de Polaco.
  • Sempre que podia chamava a turma que tinha trabalhado comigo. Mas já não era em família, tava me separando da mulher. Saía com a minha Variant e tocava o barco!
  • Muita gente boa que tomou parte do nosso primeiro elenco: Verinha, Ana Maria, Alaíde e, às vezes, aparecia uma tal de Ana. De homens tinha eu, Célio, João Vicente e o Paulinho.
  • Com o teatro, desde que comecei, nunca parei. Foi uma vida em cima do palco e dentro das telas. Decidi armar um teatrinho em casa, na Vila Doutor Laurindo. Uma mistura de cinema e teatro. Eu mesmo construí, mas foi fácil, precisava de pouco material, era só adaptar o barracão. Foi a primeira sede do Teatro-Estúdio Explym.
  • Lá tinha um palquinho e levei muitas comédias, ainda no final dos anos 70. Fazia uns cartazinhos pra conseguir patrocínio para oferecer uma apresentação de graça para o povo. E dava certo.
  • Quando eu fazia teatro no palco da minha casa o elenco era bem mais reduzido, então não dava pra montar muitas das peças. Pelo menos, pude adaptar algumas pra ter menos personagens. Levávamos tudo “no vá”.
  • Aos poucos fui ganhando cartaz no bairro e logo toda criançada da Vila Jurema vinha me assistir. Logo na entrada eu colocava uma guarita pra distribuir os convites e, quando entravam, davam de cara com o palco.
  • Continuei fazendo shows pela região: eu, a Jane, que é minha filha e se apresentava com o nome artístico de Gygy, e o Luiz Cargolyver. Fui assim até pouco tempo atrás. Três foram filmadas, O Viajante de Sebo, O Desespero do Sabugo e Polaco em Histórias Assombrosas.

EXPLYM, O COMANDANTE

  • No cinema comecei depois. Era um sonho antigo… A cidade toda já sabia que eu gostava da coisa: foi em 1964 que fiz um curso por correspondência na Academia Americana de Cinema. Tenho até hoje a carteirinha.
  • Fiz meu primeiro filme em super-8, A Víbora Humana, de 1978 para 1979. Estreou lá no Salão do Dedé em Tatuí (exibição dos filmes de forma ambulante em bares, galpões)
  • A montagem foi feita na mão! O Ademar Machado, cinegrafista, foi muito parceiro. Sem editor nem nada, com aqueles quadrinhos minúsculos, ele punha um óclão fundo de garrafa pra enxergar.
  • No início, em 1978, éramos três pessoas, com uma câmera bem ruinzinha que consegui: eu, a Neusa Silveira, atriz dos primeiros filmes, e o Luiz Silvestre, letrista, daqueles que fazem cartazes de lojas, placas, anúncios.
  • Depois do A Víbora Humana filmamos mais nove longas em super-8, entre eles Na Trilha do Ódio, O Misterioso Senhor Moretti, Dois Nós Cegos no Oeste e Estigma da Violência. E como não podia deixar de fazer um filme sobre o Dioguinho, fiz logo de cara dois, O Filho de Dioguinho e Dioguinho Volta para Matar.
  • Também fiz três meio pesados, proibidos, O Gosto Amargo da Vingança, O Despertar de um Pesadelo e Um Inesquecível Amor. Tava todo mundo fazendo no cinema brasileiro… Porque não?
  • Pra fazer nossos filmes, a gente ocupava todos os cenários das redondezas. Eu saía com o carro investigar lugares pra filmar. E investigava mesmo!
  • Das trucagens eu não revelo os truques. Igual mágica, o importante é manter o mistério. É assim: precisa aparecer, mas não pode revelar como foi feito. Para o público se envolver, sentir a emoção, se entregar naquela história que está sendo contada.
  • Depois das filmagens, vinha a dublagem. O primeiro estúdio próprio pra isso que criei na Explym foi na rua 7 de Setembro, 236, vizinho ao bar do Elias. Tinha uma mesona, com todos os apetrechos. Parecia com aqueles estúdios de rádio.
  • Ninguém fez tanto filme e ninguém fez tanto pelo super-8. Quantos cineastas tem tantos longas como eu? Pra me criticar, o pessoal diz que nos faroestes do Expedycto aparece até ônibus! É verdade, mas na hora de perguntar como faz, é pra mim que perguntam.
  • Eu que empresariava, batalhava, procurava um lugar e ia fazer. Então, apresentamos em muitos lugares, tudo com muita luta pra divulgar e juntar público.
  • Mas comecei a sentir que não era a melhor maneira: o repertório tava aumentando e não fazia sentido eu montar toda a estrutura para exibir um ou dois filmes.  Decidi então criar um Pavilhão Cinematográfico da Explym.
  • Assim eu poderia circular, como fazia nos tempos do circo, pelas cidades da região. E praticamente sozinho, porque não ia precisar de um elenco, equipe, como quando tinha o Circo-Theatro do Alemão. Resolvi cair na estrada!
  • O primeiro armei na Americana e depois no bairro dos Mirandas. Era uma estrutura simples, mas ficou bonito. Cheguei a ficar mais de um mês apresentando o nosso repertório.
  • Era corrido: suava pra montar tudo e ter o pavilhão pronto pras sessões de quinta, sexta, sábado e domingo. E às vezes com matinês nos fins de semana. Exibia um por um até acabar o repertório e começava a repetir até arrumar outra praça.
  • Quando decidi parar, parei de vez. Antes eu achava que era dificultoso exibir os filmes por não ter um cinema meu e, por isso, fiz o pavilhão. No fim ficou tão difícil quanto.
  • O pavilhão caiu por cima da igreja. Era tudo reforçado, de chapa galvanizada, mas não aguentou: foi uma chuvarada daquelas que deu até no noticiário. Foi duro enfrentar isso pela segunda vez.
  • Continuei apresentando os filmes por aí, como eu fazia antes. Carregava um telão, um ou dois projetores e exibia nos bairros. Em quase todo lugar em que montei o circo, cheguei a exibir filmes também.
  • Mas, nem sempre era fácil. Eu cobrava ingresso, tinha que controlar bem a bilheteria e, às vezes, todo esforço não dava em nada. Por isso, aos poucos comecei a pedir patrocínio: um valor antecipado, pra dez ou quinze pessoas até preencher uma cartela.
  • Depois que acabou o super-8, parei de filmar por doze anos. Não pude mais produzir, desativaram os laboratórios, e foi ficando muito caro. Isso porque veio o VHS.
  • Mesmo sem produzir, continuei exibindo nas redondezas e nas duas sedes da Explym, o Teatro-Estúdio Explym, na minha casa. O primeiro na Vila Doutor Laurindo e, depois de 1985 mais ou menos, na Vila Jurema.
  • Não passava uma semana sem consultar o preço das câmeras de vídeo. Separei um cofrinho pra juntar dinheiro e resolvi fazer pequenos servicinhos no fim de semana.
  • Comecei vendendo raspadinha em campo de futebol, mas o que ganhei mais mesmo foi com o churrasquinho. Em 1996 tive dinheiro suficiente pra comprar a câmera e voltei a filmar.
  • Em VHS fiz mais de dez filmes de longa-metragem, muitas Cortinas Cômicas, que eram esquetes que a gente fazia no circo, e documentários, entre eles quatro longas sobre a história da Explym Produções Filmes, que chamei de A Carreira do Artista.
  • No vídeo, para fazer a montagem, se errasse um pouquinho já passava e pra voltar de novo no ponto era duro. Não era um corte preciso como no super-8. Como marceneiro, exigi a vida toda que só trabalharia com ferramenta afiada, que deslizasse na hora de cortar. O VHS não me dava essa opção.
  • Comecei com dois filmes, um era continuação do outro. Sertão em Conflito e Noivado Sangrento. Depois veio O Sonho do Jeca (O Jeca na Cidade), A Sogra Maldita, Vai Fogo, Pimentão!, A Ronda da Morte e Um Rambo Esculachado. Mas de todos os filmes que fiz em VHS, o que mais gosto foi o mais recente, Sentimento Mortal. A cena final é uma das melhores que já filmei.
  • Em 2019, conheci o Felipe Abramovictz e, desde então, muitas histórias: cópias novas pros filmes em super-8, há tanto tempo guardados nas gavetas, e até voltei a exibir por aí. Viva o Festival Cinema e Sonho!